quarta-feira, 11 de novembro de 2020

O herói de guerra português que é santo carmelita

D. Nuno Álvares Pereira

Autora: Renata Cristina de Sousa Nascimento

Os elementos de singularidade de Nuno Álvares Pereira são traçados inicialmente sob suas façanhas militares e sólida lealdade ao rei D. João I. Nascido no ano de 1360, provavelmente em Cernache do Bonjardim, a historiografia recente aí situa que seu pai, Álvaro Gonçalves Pereira (Prior do Crato) teria seu paço. De autor desconhecido a Crónica do Condestabre (ou Estória de Dom Nuno Álvares Pereira), escrita no início do século XV inaugurou a mitificação deste personagem. “O texto original não chegou até nós. O que conhecemos é o que resultou da edição empreendida em 1526 por Germão Galharde” (MONTEIRO, 2017, p. 41), provavelmente esta edição teria sido patrocinada pela Casa de Bragança. D. Afonso I (1377-1461), filho ilegítimo de D. João I foi o 1o Duque de Bragança, tendo se casado com Beatriz Pereira de Alvim, única filha de Nuno Álvares Pereira. As Crónicas de Fernão Lopes, especialmente a Crónica de D. Fernando e a Crónica del Rei Dom João I da boa memória são fontes narrativas valiosas para o conhecimento deste personagem. Conforme a Crónica de D. Fernando Nuno Álvares iria viver na corte aos 13 anos. Levado por seu pai, aí foi armado cavaleiro sendo inicialmente pajem da rainha Leonor Teles. Aos 16 anos casou-se com uma jovem viúva, Dona Leonor Alvim.

Os traços do cavaleiro audaz e virtuoso atribuídos ao personagem tem clara influência dos contos arturianos, sendo Nuno Álvares uma espécie de Galaaz nas narrativas sobre sua atuação guerreira. As fontes se preocupam em realçar três elementos constitutivos deste personagem, e que delimitariam sua posterior iconografia: O guerreiro, senhor de terras e o devoto. Quanto à carreira militar sua primeira participação efetiva foi em 1381, na terceira guerra entre Castela e Portugal, ocorrida durante o reinado de D. Fernando I. Após a morte do monarca em 1383, o contexto sucessório instável obrigaria Nuno Álvares a uma tomada de decisão que marcaria seu destino. Desde o início da crise sucessória Nuno foi aliado incontestável do Mestre de Avis, sendo seu companheiro de armas e fronteiro da comarca alentejana. Em 1384 destacou-se na Batalha de Atoleiros. Nas cortes de Coimbra ocorridas em 1385 foi feito Condestável do reino.

Enlegido o Meestre e alçado assi por Rei, falou-se logo que fizessem condestabre para a guerra em que eram postos, segundo novamente fezera el-Rei D. Fernando, quando em seu tempo os Ingreses veerom. E ordenou el-Rei que o fosse o seu mui leal e fiel servidor Nuno Álvarez Pereira, avendo aaquel tempo vinte e quatro anos e nove meses e doze dias, conhecendo dêl que era d’honestos costumes e mui avisado nos autos da cavalaria (FERNÃO LOPES, 1939, 1a parte, cap. 193, p. 63)

Na Batalha de Aljubarrota (1385), épico da história militar portuguesa, sua ação é vista por Fernão Lopes como providencialista. Fátima Regina Fernandes (2009) destaca as preferências e táticas bélicas do Condestável, promovendo uma estratégia eficiente, diferenciando do conceito oligárquico de guerra. Esta noção começava a ser substituída, priorizando a infantaria e escaramuças nos confrontos. O Condestável não era muito favorável às operações de cerco, estratégia militar considerava por ele muito morosa. Preferindo sempre as batalhas campais, foi protagonista nas três que participou: Atoleiros (1384), Aljubarrota (1385) e Valverde (1385). Nesta última, ocorrida poucos meses após Aljubarrota, correu grande risco tendo sido ferido no pé. Com a vitória e aclamação de D. João I que governou de 1385 a 1433, o Condestável de Portugal firmou-se como um grande senhor, possuindo patrimônio invejável, além de prerrogativas de natureza jurídica e direitos sobre as populações. Recebendo diversas benesses reais, que também se estenderiam a seus apaniguados, não tardaram conflitos e difamações. Esta situação teria conduzido a coroa a proibir o controle total de Nuno Álvares sobre seus vassalos. O fim do conflito entre o Condestável e seu rei passaria pelo acerto do já citado casamento de sua filha Beatriz Pereira de Alvim, com D. Afonso I, bastardo do monarca. 

Possuidor dos condados de Barcelos, Ourém e Arraiolos, doou a seu genro o condado de Barcelos, como dote por seu casamento com sua filha. Deste matrimônio nasceriam seus netos Afonso e Fernando, que foram agraciados por seu avô com grande patrimônio. Deles nasceria a poderosa e real Casa de Bragança. Com domínios no norte, centro e sul, preferiu provavelmente Almada edificando neste local um paço. Em julho de 1404 nos seus paços de Alamada fez sua primeira grande doação de bens ao Convento do Carmo, fundado por ele em Lisboa (MONTEIRO, 2017). Temos aí uma destacada faceta do Condestável, que garantiria sua canonização quase seiscentos anos após sua morte, a de religioso. A par de seu perfil guerreiro, e fundador de uma importante casa nobiliárquica temos a exaltação de sua santidade. A construção narrativa sobre “o Santo Condestável” foi iniciada ainda durante sua vida. Nas crônicas foi sempre retratado como um homem que aliava sua prática de guerra aos afazeres religiosos; respeitava os dias santos, ouvia missa todos os dias; evitava que seus homens invadissem igrejas; protegia os pobres e desamparados.

Adepto de uma espiritualidade mais litúrgica retirou-se ao Convento das Carmelitas em Lisboa aos 62 anos, em 1422 (depois da conquista de Ceuta), lugar em que viveu os últimos nove anos de sua vida. Conforme Aires do Nascimento (2010), o rei D. Duarte (1391-1438), solicitou a Roma sua canonização. Seu irmão, D. Pedro também teria manifestado diversas vezes sua devoção ao santo conde. Observa-se o início da construção de santidade do Condestável ligada à Casa de Avis. De sua iconografia temos várias representações, muitas destas ligadas ao herói das batalhas, ou ao carmelita. A Chronica dos Carmelitas da antiga, e regular Observancia nestes Reynos de Portugal, Algarves, e seus Domínio, do Frei José Pereira de Sant’Anna, escrita em 1745 ocupa-se na Parte III do Tomo I à fundação do Convento do Carmo em Lisboa. Mesmo tendo um alto grau de comprometimento com a Ordem do Carmo, é uma fonte que deve ser considerada com atenção. Ela revela parte do cotidiano da construção do Convento e da própria rotina de seu fundador. Grande parte da documentação consultada pelo Frei Pereira de Sant’Anna foi destruída no grave incêndio ocorrido em Lisboa, em 1755.

Como donato (semifrater) Nuno Álvares ocupava uma pequena cela, vivendo de forma simples, praticando a caridade. Gouveia Monteiro (2017) assinala a influência que este teria recebido dos eremitas alentejanos, não esquecendo também que era um nobre da família Pereira, filho e irmão de priores da Ordem do Hospital. Os carmelitas associavam-se ao exemplo do profeta Elias, de tradição eremítica e de despojamento de riquezas. Ao entrar no Convento do Carmo o Condestável teria se despojado de todo seu patrimônio. Sua filha Beatriz já havia falecido, e este já encontrava- se distante das decisões da corte régia, embora mantivesse uma relação de amizade com os infantes, especialmente D. Duarte, que se tornaria rei em 1433. Ambicionando a vida contemplativa e de pobreza, ao tornar-se donato passou a chamar-se Nuno de Santa Maria. As fontes indicam que em sua vida conventual praticava constantemente o jejum, e penitências corporais. A religiosidade popular o agraciava com a epíteto de santo. Aos 71 anos e 11 meses faleceu em Lisboa, no ano de 1431, sendo seus restos mortais inicialmente expostos na Igreja do Mosteiro em que vivia. Sua trajetória de vida e de devoção deram origem à sua fama de santidade.

Na correlação político-religiosa, elevam-se as aproximações entre sagrado e profano, em mútua dependência. A reputação de santidade atribuída a D. Nuno Álvares Pereira, é uma construção que envolve várias épocas. A eficácia da elaboração e consolidação de uma imagem de santidade perpassa por elementos substanciais: A narrativa hagiográfica, o reconhecimento de milagres, e uma vida pautada por diversas virtudes. Ao começar pela Crónica do Condestável de Portugal, temos a exaltação destas virtudes. Ao empenhar-sena proclamação de santidade de Nuno de Santa Maria, o rei D. Duarte enviou a Roma uma oração elaborada por seu irmão D. Pedro. Aires do Nascimento (2017, p. 340) nos oferece a tradução da mesma, revelando o perfil de sacralidade que desejava-se perpetuar; “Modelo de príncipes, exemplo de senhores, espelho de contemplativos és tu, bem-aventurado Nuno! Tu foste firme e forte em combate, tu foste comedido e apiedado na vitória, tu foste justo e misericordioso na paz, tu foste obediente e devoto no claustro”.

Após o Terremoto de Lisboa em 1755, seus despojos corporais foram diversas vezes levados de um lugar para outro. Estavam inicialmente em um relicário de prata, que foi roubado. Seu túmulo primitivo foi finalmente reconhecido em 1961 (NASCIMENTO, 2018). Quanto ao que restou de seus ossos estes foram depositados na Igreja do Santo Condestável no Campo de Ourique (Lisboa), em agosto de 1951. Na ocasião organizou-se um cortejo solene, com a presença de várias autoridades políticas e religiosas. As relíquias foram depositadas na cripta da Igreja, onde lá permanecem. A revalorização de sua memória tornou-se mais sólida, após a canonização de São Nuno de Santa Maria, pelo papa Bento XVI em 2009.

Referência: Dicionário: cem fragmentos biográficos. A idade média em trajetórias /Guilherme Queiroz de Souza & Renata Cristina de Sousa Nascimento (org.): Tempestiva, 2020.

Você pode ler no original em: https://bit.ly/100Fragmentos

sábado, 17 de outubro de 2020

Por que nas igrejas carmelitas existem imagens do Profeta Elias?

   


Já escrevemos aqui outras vezes sobre as o Profeta Elias, essa figura do Antigo Testamento que permanece presente em recantos do catolicismo muito graças a Ordem dos Carmelitas. 

    Hoje indicamos mais um trabalho que trata deste tema, no artigo "Cultura carmelita em ação: A construção da origem eliana da Ordem de Nossa Senhora do Carmo" do doutor em história André Honor, que te ajudará a descobrir como mantemos essas imagens do Profeta Elias até os dias hoje em muitas igrejas pelo Brasil. 

Segue o resumo: O presente artigo busca analisar a origem eliana da Ordem Primeira de Nossa Senhora do Carmo através da perspectiva da História Cultural, formulando-se, para isso, o conceito de cultura histórica carmelita. A análise utilizou como fontes primárias as principais crônicas carmelitas que narram a história da Ordem, que sempre principiam com a presença do profeta Elias na Terra, seja narrando sua história desde o seu nascimento ou tomando como ponto de partida o seu ciclo bíblico. Fruto de extrema controvérsia, a origem eliana possui papel fundamental dentro da Ordem Carmelita ao proporcionar à congregação a primazia da antiguidade entre o clero regular conectando a presença do profeta no Monte Carmelo ao surgimento da devoção à Nossa Senhora do Carmo. 

    Se você gostou desse tema não deixe de ler: A tradição e a iconografia do Profeta Elias...

sábado, 6 de fevereiro de 2016

PEREGRINAÇÃO E HEREMITISMO: ESPIRITUALIDADES FUNDANTES DA ORDEM DO CARMO NA TERRA SANTA, SÉCULO XIII

Tiago Correia da Silva


RESUMO
A peregrinação e o heremitismo são espiritualidades fundadas em elementos bíblicos e na tradição cristã que decorre desde os primeiros séculos, tornando-se fortes movimentos espirituais no medievo, sobretudo no período das cruzadas. Aqui trataremos da Ordem do Carmo que surge no século XIII e converge em suas origens essas duas espiritualidades, pois surge em um local de peregrinação, a Fonte de Elias no Monte Carmelo, Terra Santa. Esta ordem religiosa tem sua primeira institucionalização como um collegium de eremitas, dada na Formula de Vida escrita por Santo Alberto de Vercelli entre 1206 e 1214. Essas marcas espirituais acompanhariam esta ordem em sua migração da Terra Santa ao Ocidente e, mesmo com profundas transformações, prosseguiriam vivas no espirito do Carmelo. 
Palavras-chave: Espiritualidade Medieval; Peregrinação; Heremitismo; Ordem do Carmo.

ABSTRACT
Pilgrimage and eremitism are spiritualities rooted in Scripture and Christian Tradition.  These movements, which are evident from the earliest days of the Church, were to gain prominence in the medieval age, especially in the Crusades. This work will demonstrate how the Carmelite Order, which traces its origins to the 13th century, blends these two spiritualities. The cradle of the Order, Mount Carmel, was long a place where hermits lived and pilgrims visited.  The Carmelite Order began as a collegium of hermits who approached the Patriarch of Jerusalem, Albert of Vercelli, for a FormulaVitae sometime between 1206-1214. Although the hermits were to leave the solitude of Mt Carmel soon after receiving this document from Albert and enter the mendicant movement of developing cities in Europe, they continued to be rooted in, and influenced by the spirituality of pilgrimage and the hermit life.

Keywords: Medieval Spirituality, Pilgrimage, Eremitism, Carmelite Order.

1.INTRODUÇÃO

            A cristandade do século XIII é fecunda em movimentos espirituais e as Cruzadas realçam esse elemento, pois estas expedições militares tinham um ativo caráter religioso. As peregrinações aos lugares sagrados na Terra Santa se tornam novamente possíveis por meio delas e junto aos cruzados vemos a formação de outros movimentos religiosos como os eremitas. Aqui trataremos como a espiritualidade própria das peregrinações e do heremitismo deram origem e marcaram a Ordem do Carmo que surge no período da Terceira Cruzada, junto a Fonte de Elias no Monte Carmo. 

Ruínas do antigo convento carmelita do Monte Carmelo. 


2. A PEREGRINIÇÃO E OS PRIMEIROS CARMELITAS
            O ideal de peregrinação no cristianismo tem origem nas Sagras Escrituras[i], na qual todo cristão é considerado peregrino. Isto também nos é relatado na Carta a Diogneto, escrito apologético do século II: “Vivem em suas pátrias como forasteiros; participam de tudo como cristãos e suportam tudo como estrangeiros. Toda pátria estrangeira é pátria deles, e cada pátria é estrangeira.”[ii] Tendo em vista tal fundamentação teológica-espiritual, já nos primeiros séculos do cristianismo, encontramos registros de peregrinações a Roma e ao Oriente, sendo o lugar de peregrinação por excelência a Terra Santa. Assim surge o conceito de Loca Sancta: lugares santificados pela presença de Cristo ou outros personagens das Sagradas Escrituras.
            Os conceitos de peregrinação e lugar santo se tornam, na Idade Média, dependentes. Os cristãos saem de suas pátrias como peregrinos para lugares santos. Entre eles se encontravam os sepulcros dos apóstolos Pedro de Paulo, em Roma; as relíquias de São Tiago, em São Tiago de Compostela; e ainda as peregrinações à Terra Santa aconteciam em meio a grandes dificuldades pelo domínio muçulmano naquela região.
Se procurarmos respostas do porque sair em peregrinação, visto os perigos ocasionados por uma viagem na Idade Média, só podemos encontrá-las uma vez compreendida a formação religiosa medieval. Como explica Hilário Franco Junior: “Ideal Cristão (de santidade) era preferencialmente atingível nos mosteiros, mas os laicos de origem modesta que não podiam se tornar monges optavam por uma vida de privações, e rudeza, de severidade que era traço característico da espiritualidade popular da Idade Média”.[iii]
A peregrinação torna-se, então, um meio eficiente de penitência, seja voluntária ou como sentença por algum delito, como afirma LE GOFF e SCHIMITT:“A partir do século XIII, acontece também de ser imposta pelo confessor como forma de compensação, ou por um tribunal civil como forma de sansão penal”.[iv] Outro ponto a ser observado é o ideal escatológico presente na mentalidade do homem medieval, que faz da peregrinação algo como uma marcha a “Jerusalém Celeste”.
As cruzadas iniciadas no século XII, certamente, são expedições militares que envolvem vários fatores sociais e políticos próprios do medievo. Porém, como em todos os campos da sociedade medieval, seu plano de fundo é religioso. Entre os homens que tomam a cruz e armados partem para a Terra Santa em defesa dos lugares sagrados, estavam presentes os peregrinos e muitos dos próprios cruzados assim se consideravam.
Dentre os muitos lugares de peregrinação na Terra Santa; aqui nos interessa o Monte Carmelo; faz-se necessário entender porque o Monte Carmelo pode ser considerado um Loca Sancta. A literatura bíblica[v] exalta o Carmelo como uma bela porção da Terra prometida; no Cântico dos Cânticos[vi], é usado como um atributo de beleza no elogio do amado para amada; na profecia de Isaias[vii] fala-se “esplendor do Carmelo”, e a perca da beleza do Carmelo e sinal da ira de Deus pelos pecados de Israel[viii]. Foi ainda no Monte Carmelo que Elias[ix], um dos mais importantes profetas do Antigo Testamento, reestabeleceu a Aliança com Javé, “passando a fio de espada os 750 profetas de Baal”. Aí também, Elias pedira chuva depois de grande seca em Israel. A Bíblia ainda relata que Eliseu[x], discípulo e sucessor de Elias, manteve estadia no Monte Carmelo.
Neste Monte já veneravam Elias os Hebreus, tradição que passada aos cristãos ganhou expressividade. Ao profeta Igrejas foram dedicadas, muitos escritores eclesiásticos a ele se referiram e a figura de Elias se tornara importante, tanto para os monges que tomam o profeta como pai da vida monástica devido aos relatos bíblicos, que falam de sua penitencia e retiro do mundo; bem como figura inspiradora para os cruzados, pois,  segundo narra a bíblia, Elias defendeu Israel dos pagãos reestabelecendo a aliança com o verdadeiro Deus, da mesma forma que entendiam seu oficio os cruzados na defesa da Terra Santa contra os infiéis. Elias Friedman refere-se a algumas fontes sobre a veneração a Elias no Monte Carmelono tempo das cruzadas:
El abad ruso Daniel, em 1106, ya sabía que “em esta Montanã (el Carmelo) el santo profeta Elias vivió en una caverna y fue alimentado por um cuervo”. Benjamín de Tudela, hacia 1165 reconoció la gruta bajo el promontório como la “Gruta de Elias”. Juan Phocas en 1175 escrebía que la cueva de la extremidade del promontório del Monte Carmelo era el lugar donde Elias había vivido uma vida angélica, antes de subir al cielo...Wilibrando, quien escribe que se celebra cada dia misa soleneem la “Mansión de Elias”.[xi]
            EmaneleBoaga também se refere a esta devoção eliana entre os cruzados:
Risultaprovatochenell’ambiente dei crociati in Terra Santa esisteva uma forte devozione ad Elia profeta expressa specialmenteattraversola iconografia e laconstruzionediluogidi culto supostieliani, continuando laquestoun modo di fare già in uso dal sec. IV. Tral’altro, sembraesseredelsecolo XII lachiesetta ereta in onoredi Elia sulla via checonduce da Gerusalemme a Betlemme, nel posto ove uno tradizioneaffermavache Elia avesse sostato e chericordanomoltidegliItinera d’epocacrociata.[xii]

A partir de 1095, temos fontes que narram a estadia de peregrinos no Monte Carmelo, junto à Fonte de Elias. Alguns historiadores tomam já estes primeiros peregrinos como os futuros carmelitas; outros, prudentemente tomam cuidado de analisar que, com a batalha de Hattin[xiii] e a perca de força do Império Latino de Jerusalém, Saladino estendeu seus domínios até mais próximo ao mar possível, inclusive chegando ao Carmelo. Aí temos seu confronto com as tropas de Ricardo Coração de Leão, no início da Terceira Cruzada, narrada por RUNCIMAN em sua obra História das Cruzadas:
“O sultão, segui-o num curso paralelo montando acampamento em Tel-Kaimun, na encosta do Monte Carmelo – de onde partiu para inspecionar a região da costa ao sul do Carmelo, a fim de escolher o local para batalha.
Os Cristãos passaram por Haifa, que Saladino havia desmantelado pouco antes da queda de Acre, e contornaram o Carmelo; avançavam lentamente, de modo que a frota pudesse acompanhá-los... A cavalaria ligeira sarracena de tempos em tempos descia o Carmelo e abatia-se sobre o exército em marcha, capturando os extraviados.”[xiv]

            Conhecendo tal relato, torna-se difícil pensar que um grupo de peregrinos pudesse sobreviver em tal situação. Assim compreendemos que os peregrinos aos quais nos referimos estabeleceram-se no Monte Carmelo no período da terceira Cruzada, formando uma comunidade, algo que parece comum à época segundo nos narra LE GOFF e SCHIMITT: “entre os peregrinos que caminham juntos todos os dias cria-se uma fraternidade que pode se prolongar depois da peregrinação, em confrarias.”[xv] Em nosso caso, temos a formação de uma comunidade eremítica, na qual, encontramos ao menos dois relatos na “Regra do Carmo” que nos remetem a espiritualidade própria do movimento de peregrinação: “vivem juntos da Fonte de Elias, no Monte Carmelo[xvi]”, ou seja, em um Loca Sancta; e todo o capitulo XIV, que trata das armas espirituais, algo próprio da espiritualidade de militareJesuChisto, que não tratava-se especificamente do aspecto bélico, mas podia referir-se perfeitamente ao conceito de servitium, militiaspiritualis, ou seja, serviço pelo combate espiritual, o espírito próprio da peregrinação nas cruzadas.
Entretanto, só podemos pensar no conceito de peregrinação até aqui, pois na essência da peregrinação está a caminhada, e nossos peregrinos se fixaram como eremitas junto à Fonte de Elias no Monte Carmelo.

3. O EREMITISMO E A PRIMERIA INSTITUCIONALIZAÇÂO DA ORDEM DO CARMO.
            O cristianismo primitivo encontrou muitos modelos para uma vida eremítica. Entre estes, recorremos a Elias, pois entre os padres da Igreja já se tem uma série de escritos que relacionam este profeta ao ideal eremítico. São Jerônimo escreve: “Os nossos príncipes Elias e Eliseu e nossos chefes os filhos dos profetas, que habitavam no campo e na solidão, constituíram suas tendas perto do rio Jordão”. Isto é Elias juntamente com João Batista e Jesus são os grandes modelos para a vida eremítica que é a origem de toda a vida religiosa.
            No cerne da espiritualidade eremítica está a solidão. O eremita se afasta dos meios urbanos e parte para o deserto, lugar de profundo combate espiritual, de vivência radical da pobreza e privações de todo tipo. Uma severa acesse que pede um profundo contato com as Sagradas Escrituras e um desejo intenso de contemplação. Assim, a vida eremítica é profundamente escatológica, pois é um privar-se de tudo neste mundo passageiro em vista de se ter tudo na vida eterna.
O esplendor do eremitismo nos primeiros séculos logo seria substituído pela vida monástica. Esta ganharia, no ocidente, uma legislação comum que é a Regra de São Bento, e tamanha força que suplantaria outras formas de vida religiosa. Mesmo a reforma na vida clerical, que dá origem aos cônegos regulares, teria uma profunda inspiração monástica. Entretanto, seguindo a Regra de Santo Agostinho, temos então no ocidente medieval dois modelos principais de vida religiosa: a monástica e os cônegos regulares.
Porém, ao chegar nos séculos XII e XIII, os mosteiros e cabidos entravam-se envoltos em grandes e complicadas estruturas, que nem sempre convergiam com a aspiração de santidade própria da vida religiosa. Temos, então, um renascer da vida eremítica, seja entre leigos ou monges que buscam a fuga mundi, e a acesse silenciosa da solidão do deserto. Surgem junto às peregrinações muitos movimentos eremíticos espontâneos por toda a Igreja, que logo ganhariam certa uniformização, contando com rituais para ingresso na vida eremítica, regulamentação do contado do eremita com o mundo, e a prática da direção espiritual. Alguns monastérios passariam a ser conhecidos como eremitério e seriam regidos por regras eremíticas cenobíticas.
            Sobre a comunidade eremítica reunida ao redor da fonte de Elias, nos chegam um conjunto de informações vinda da “Regra do Carmo”, que foi escrita entre 1206 a 1214, por Santo Alberto[xvii], Patriarca Latino de Jerusalém. Porém, embora a fonte da qual tratamos seja conhecida como “Regra do Carmo”[xviii], esta não fora escrita como regra, mas sim como uma “Norma de Vida” para a regulamentação de um collegium no Monte Carmelo. Não tendo como objetivo se tornar uma regra válida para uma Ordem religiosa que difundir-se-ia por toda a Igreja. A organização canônica considerava Regule, textos escritos por um Padre da Igreja, com certa antiguidade, e que foram aprovados pelos concílios. Estas eram, no início do século XIII,a Regula S. Benedicti, para a vida monástica; e a Regula S. Augustini, para a vida dos clérigos regulares. Seus estatutos gozavam de estabilidade, universalidade na Igreja e reconhecimento como tradicionais normas de vida. Já a Vita Formula ou PropositumConversationes eram juridicamente inferiores, pois, representavam a legislação a um estado de vida ascética, porém não no grau de uma Ordem Religiosa, mais sim em grupos locais, sob a autoridade do bispo diocesano.
            O texto da “Regra do Carmo” é dirigido a um grupo de eremitas, e seu corpo consiste em orientações para a conservação dos elementos fundamentais a este estilo de vida: solidão, leitura e meditação constate das Sagradas Escrituras, ascese pelo jejum, abstinência e silêncio. Estas orientações de Santo Alberto estavam de acordo com o modo de vida levado pelos eremitas no Monte Carmelo um “lugar ideal para contemplação”, visto que são orientações austeras são dirigidos a homens que buscavam a santidade. 
            Porém, o cânon número XIII do IV Concilio de Latrão (1215) proibia a criação de novas ordens religiosas, sendo a Ordem do Carmo salva desta prescrição graças à bula Ut vivendi norman, de Honório III, que em 1226 confirmou a “Norma de Vida” dada por Alberto de Jerusalém. Três anos depois, na bula Exoffiinostri, Gregório IXreferira-se pela primeira vez à “Norma de Vida” como Regra. Seria este Pontífice que dirigiria ainda outras bulas concedendo uma série de privilégios à Ordem do Carmo.
            Outro aspecto da espiritualidade destes primeiros eremitas, que se tornou fundamental à toda Ordem do Carmo, foi à construção de uma capela no Monte Carmelo que fora dedicada à Virgem Maria. Ela se tornaria patrona do Carmelo[xix] e daria seu nome a este grupo de eremitas, que passariam a ser conhecidos como os Irmãos da Bem-Aventurada Virgem Maria do Monte Carmelo, como aparece, em 1251, em uma bula pontifícia do Papa Inocêncio IV[xx].
            Entretanto, a vida no Monte Carmelo não foi segura por muito tempo. Do Império Cristão conquistado pelos cruzados, sobrava um faixa de terra na costa do mar. Os problemas internos multiplicavam-se e as cruzadas eram cada vez pior sucedidas. Assim, o embate entre mulçumanas e cristãos logo chegou ao Monte Carmelo. Não sendo mais segura a estadia destes eremitas na Terra Santa, em 1238 iniciam as migrações para o Ocidente. Porém, partindo desta data, os conflitos no Monte Carmelo ficarão cada vez mais acirrados como nos narra RUCCIMAN:
“No começo de 1264, o templo e o hospital aquiesceram em unir forças para capturar a pequena fortaleza de lizon, a antiga Megido, e alguns meses mais tarde aliaram-se para uma incursão até Ascalão; ademais, no outono as tropas francesas, pagas por S. Luís, permaneceram de forma muito lucrativa até os subúrbios de Beisan. Em compensação, porém, os mulçumanos devastaram de tal modo a área rural franca ao sul do Carmelo que a vida ali deixou de ser segura”[xxi]

Não há como pensar que os carmelitas que permaneceram no Monte Carmelo tenham vivido de uma forma diferente da vida eremítica. Porém, os carmelitas que migraram para Europaestabeleceram-se nas cidades e confrontavam com outra realidade. Estes logo pediriam a aprovação e mitigação de sua “Regra”, que seria promulgada na bula Quae honorem Conditoris, de Inocêncio IV, em 1247, primeiro passo para passarem de eremitas a mendicantes. Nas constituições de 1281 são expressas claramente características mendicantes na forma de vida dos frades, o que levaria ao reconhecimento definitivo do Carmelo como uma Ordem mendicante pela bula Tonoremcujusdamconstitutiones, de Bonifácio VIII, que em 1298 equipara a Ordem do Carmo aos Franciscanos e Dominicanos. Entretanto, não se pode comentar tal transformação sem citar um movimento de oposição à mendicância manifesto claramente pelo Padre Geral Nicolau Gálico em sua obra a IgneaSagitta, de 1270, que é um diálogo entre a Mãe (a Ordem) e o filho (Nicolau), na qual veementemente exorta os carmelitas a voltarem à vida eremítica.
Joaquim Smet refere-se ao último relado sobre os eremitas do Monte Carmelo no século XIII:
Burcardo de Monte Sión, domínico que residia hacía tempo en Acre. Em 1283 visitó a los religiosos del Monte Carmelo: “Desde Haifa, a una légua a la izquierda, em la vía que lleva al Castillo de los Peregrinos (Athlit), en el Monte Carmelo, está la cueva de Elías y el lugar donde habitó Eliseo y la fuente donde los Hijos de los Profetas viveron y donde los Hermanos del Carmelo viven ahora. Allíestuveyoconellos”.[xxii]
Por fim em 1291temos a completa extinção do eremitério carmelita na Terra Santa: “Logo em seguida, o sultão ocupou Haifa sem oposição em 30 de julho, e seus homens atearam fogo aos monastérios do Monte Carmelo, assassinando seus monges”[xxiii]

Texto latino da Regra do Carmo de 1247


4. CONCLUSÃO
            No fim do século XIII os carmelitas são mais uma das Ordens Mendicantes. Porém, como demostrado, a origem desta Ordem nos remeteà espiritualidades que encontram seus fundamentos nos primeiros séculos da tradição Cristã e são para os cristãos desde a Antiguidade Tardia até a Idade Média, uma forma de vida que os encaminha à santidade por meio da penitência e das privações. Este ideal de santidade fez os primeiros peregrinos chegarem ao Carmelo, o lugar santo no qual habitaram o profeta Elias e Eliseu. Ali formaram uma comunidade eremítica a exemplo dos mesmos profetas e segundo a tradição cristã. A forma de vida destes religiosos se modificou no Ocidente, porém, este ideal primeiro de santidade permaneceuvivo e, mesmo como mendicantesviveriam a exemplo de Elias e segundo a Regra dada por Alberto; carregariam em seu nome a devoção a Maria e ao Carmelo, lugar de onde provinham, sendo estes elementos que nos permite ligar a espiritualidade fundacional da Ordem à sua nova organização no Ocidente.



[i]cf. Hebreus XI, 14-16; I Pedro II,11.
[ii]Padres Apologistas. São Paulo: Paulus, 1995, p. 22.
[iii] FRANCO. Hilário. As Cruzadas. São Paulo: Brasiliense, 1981, p. 32
[iv] LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean-Claude, Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Bauru: EDUSC, 2006, p. 354
[v] Referimo-nos aqui à literatura bíblica, pois André Vauchez, em sua obra La espiritualidade delOccidente medieval p. 96-97, se refere a uma disputa entre leigos e clérigos para obtenção do direito à  pregação bíblica já em meados do século XII. Refere-se ainda à traduções dos Evangelhos em línguas vulgares e exemplos nos quais o direito de pregação foi concedido a leigos e eremitas, assim reconhecemos no período das cruzadas alguma familiaridade dos peregrinos com as Sagradas Escrituras, o que pode ser observado também entre os peregrinos que passam pelo Monte Carmelo e deixaram-nos relatos fundamentados nas histórias bíblicas que dão significado a este lugar, bem como um conhecimento exegético do “Ciclo de Elias” que poderia ser conhecidos pela literatura bíblica ou pelos vários ícones que retratavam o profeta no século XIII.
[vi] Cf. Cântico dos Cânticos VI, 6.
[vii] Cf. Isaias
[viii] Cf. Isaias XXXIII, 9 ; Amos I,2; Naum I,4
[ix] O ciclo de Elias se encontra nas Sagradas Escrituras entre o cap. XVII do I Livro dos Reis e o cap. III do II Livros dos Reis. Quanto a Elias na tradição carmelitana pode ser consultada a obra editada por CHANDLER, Paul, A Journeywith Elijah: CarmeliteSeminarontheProphet Elijah Whitefriars Hall, Washington DC 3-9 April 1991. Roma: CasaEditriceInstitutumCarmelitanum, 1991.
[x] Quanto ao profeta Eliseu na tradição carmelitana pode ser consultado o artigo de: SANTIN, Wilmar, O Profeta Eliseu e a tradição carmelitana, in http://historiadocarmelo.blogspot.com.br/2012/08/o-profeta-eliseu-e-tradicao-do-carmelo.html.
[xi] FRIEDMAN, Elias, El Monte Carmelo y los Primeiros Carmelitas. Burgos: Editorial Monte Carmelo, 1985, p. 33.
[xii]BOAGA, Emanuele, Eliaalleoriginidell’OrdineCarmelitano, in: CHANDLER, Paul, A Journey with Elijah: Carmelite Seminar on the Prophet Elijah Whitefriars Hall, Washington DC 3-9 April 1991. Roma: CasaEditriceInstitutumCarmelitanum, 1991, p. 91
[xiii] Batalha na qual os muçulmanos liderados por Saladino reconquistaram Jerusalém em 1187.
[xiv] RUNCIMAN, Stiven, História das Cruzadas, volume III: o Reino de Acre e as últimas cruzadas. Rio de Janeiro: Imago, 2003, p. 59
[xv] LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean-Claude, Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Bauru: EDUSC, 2006, p.354
[xvi] REGRA DO CARMO, prologo.
[xvii] Alberto de Vercelli, que havia desempenhado cargos proeminentes antes de ser eleito patriarca de Jerusalém pelos cônegos do Santo Sepulcro em 1204. Nasceu na diocese de Parma. Ingressou nos Cônegos Regulares de Mortara, como bispo governou a diocese de Vercelli por 20 anos e foi frequentemente chamado pelos papas a desempenhar ofícios diplomáticos delicados no norte da Itália. Na Terra Santa onde chegou em 1206, dedicou seus esforços de legado pontifício para harmonizar as relações entre os príncipes feudais cristãos. Em 14 de Setembro de 1214, durante a procissão da Santa Cruz em Acre, Alberto morreu apunhalado. Sobre Santo Alberto de Jerusalém pode se consultar: MOSCA, Vicenzo, Alberto Patriarca diGerusaleme, Roma: Edizione Carmelitana, 1996.
[xviii] Sobre a evolução e os aspectos jurídicos da Regra do Carmo pode se consulta a obra de: CICONETE, Regula de Carmen, Roma; Edizione Carmelitana.
[xix] A devoção a Virgem Maria do Monte Carmelo foi levada ao Ocidente pelos Carmelitas e se tornaria uma das mais populares da Igreja Católica Romana.
[xx] COPSEY, Richard, The Ten Books of the Way of Life and Great Deeds of the Carmelites. Roma: EdizioniCarmelitane, 2005, p. 145.
[xxi] RUNCIMAN, Stiven, História das Cruzadas, volume III: o Reino de Acre e as últimas cruzadas. Rio de Janeiro: Imago, 2003, P. 280.
[xxii]SMET, Joaquín, Los Carmelitas: História de la Ordem del Carmen, Volume I: Los orígines. En busca de la identidade. Madrid: La Editorial Catolica, S. A., 1987, p. 41.
[xxiii] RUNCIMAN, Stiven, História das Cruzadas, volume III: o Reino de Acre e as últimas cruzadas. Rio de Janeiro: Imago, 2003, p. 368.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

A TRADIÇÃO E A ICONOGRAFIA DO PROFETA ELIAS, NO OCIDENTE E ORIENTE TARDO-ANTIGO E MEDIEVAL

 Tiago Correia da Silva[1]
                                                                                                                          
RESUMO

A devoção e culto ao profeta Elias tem origem na Sagrada Escritura e ganha força na tradição hebraica, esta que influenciaria o Cristianismo nascente fazendo que o profeta fosse lembrado nas Escrituras cristãs e ganhasse muitas interpretações juntos aos primeiros Padres da Igreja. No Islamismo no qual a revelação é intimamente ligada ao Judaísmo e ao Cristianismo o profeta Elias novamente apareceria nesta tradição. Porém, se este profeta é cultuado pelas três religiões monoteístas, devido à proibição de representações no Judaísmo e islamismo, a representação iconográfica de Elias ficaria a cargo do Cristianismo, no qual encontramos registros desde os primeiros séculos da Igreja seja no Ocidente ou no Oriente, e abrange os vários fatos da vida do profeta bem como a devoção característica das Igrejas em suas respectivas tradições.
Palavras chaves: Profeta Elias, Iconografia, Tradição Eliana.


THE TRADITION AND THE ICONOGRAPHY OF THE PROPHET ELIJAH, IN EAST AND WEST LATE-ANTIQUE AND MEDIEVAL.

ABSTRACT
The devotion and worship to Prophet Elijah have their origin in the Holy Scripture and they gain reinforcement in the Hebrew tradition, which influenced the early Christianity becoming the Prophet remembered in the Christian Scriptures and obtained many interpretations by the first Fathers of the Church. In the Islam, in which the revelation is deeply linked to Judaism and Christianity, the Prophet Elijah would appear again in this tradition. However, if this Prophet is worshiped by the three monotheist religions, due the prohibitions of representations in Judaism and Islam, the iconography representation of Elijah would be in charge of the Christianity, in which we find records since the first centuries of the Church in the Occident or Orient, and it covers many facts of Elijah’s life, like the peculiar devotion of the Churches in their respective traditions.
Keywords: Prophet Elijah, Iconography, Elijah Traditio


1.      INTRODUÇÃO:

O Profeta Elias é um dos personagens bíblicos que sempre encontrou devoção tanto entre judeus, cristãos ou muçulmanos. Algo motivado por sua enigmática história que nos é apresentada nos 1º e 2º Livros dos Reis, em outros textos do Antigo Testamento, na literatura judaica ou nas abundantes referências nos escritos cristãos (como os Evangelhos) ou nas cartas aos Romanos e de Tiago e mesmo em muitos escritos pós-bíblicos. Elias ainda fulgura entre os profetas corânicos e encontra lugar na tradição do Islã. Porém, se o Profeta Elias aparece na literatura sagrada do Judaísmo e do Islamismo, devido à proibição de representações humanas em ambas as religiões sua imagem pictórica seria restrita em algumas figuras ilustrativas nas obras literárias a ele referentes, entretanto a representação iconográfica de Elias tendo por objetivo o culto, ficaria a cargo do Cristianismo. Esta aparece já nos primeiros séculos e se estende pela história da Igreja seja no Oriente ou no Ocidente. Tendo esse artigo o objetivo de tratar das representações de Elias e de modo particular sua iconografia, partiremos primeiramente da figura eliana que nos é dada na literatura sagrada e posteriormente mostraremos como o profeta foi caracterizado iconograficamente.

2.      O PROFETA ELIAS NAS ESCRITURAS E TRADIÇÃO HEBRAICA:
A enigmática figura de Elias aparece pela primeira vez nas Escrituras no 1º e 2º Livro dos Reis[2], entre a narração do mal sucedido governo de Acab (874-853 a.C.), que fora Rei de Israel, ao qual é atribuída a danação bíblica comum aos maus governantes  “fez o mal diante dos olhos do Senhor” (Cf. 1º Reis 16, 30). Porém, certamente antes de ser redigida a sua história nos Livros dos Reis no período do exílio, a muito permanecia na tradição oral do povo de Israel, a figura heroica do profeta[3] que ganhou força nos difíceis tempos da Babilônia, e assim foi copiada nos Livros Sagrados.
    Encontramos então, entre os capítulos 17 e 19 do 1º Livro dos Reis, o ciclo de Elias, no qual as narrativas "são desenvolvidas como uma história continua com uma estrutura e alguns temas que dão unidade literária a essas histórias" (CHALMERS, 2008, p.15) Segundo Joseph Chalmers, os elementos unificadores do texto são a permanente atuação religiosa do Profeta na defesa do javismo contra o baalismo, fator que sempre ocasiona sua perseguição. Isto fica evidente no passar desses capítulos, nos quais estão alguns dos principais fatos da vida do Profeta, tais como: sua fuga para a torrente do Carit onde seria alimentado pelos corvos; seu refugio na casa da viúva; seu embate com o Rei Acab, que tem seu ápice na disputa do Monte Carmelo, no qual o Profeta retira a vida dos profetas de Baal; temos então Elias sendo alimentado pelo Anjo e seu encontro com Deus no Monte Horeb.
 Embora, segundo a análise proposta por Joseph Chalmers tenhamos encerrado o ciclo de Elias, encontramos em 1º Reis 21, 1-18 uma história avulsa, na qual o profeta Elias aparece mais uma vez confrontando-se com Acab, desta vez seu confronto não é propriamente religioso, mas se concentra na defesa da justiça. Elias denuncia a ilegalidade feita pelo Rei Acab ao tomar a Vinha de Nabot retirando-lhe a vida e profetiza um triste fim pelo mal cometido, então o rei se arrepende momentaneamente.
No início do 2º Livro dos Reis temos duas narrações sobre o profeta Elias. A primeira em 2º Reis 1, 1-8 refere-se ao embate de Elias com o rei Acazias, sucessor de Acab, que gravemente ferido deseja consultar a divindade pagã de Baal-Zebul. Elias o impede pedindo a Deus que por duas vezes mande fogo sobre seus oficiais e homens e por fim o profeta anuncia a morte do rei Acazias.
 A segunda narrativa está em 2º Reis 2, 1-18 e nos mostra a chefia de Elias sobre os filhos dos profetas. Logo no início do texto, temos o diálogo entre os filhos dos profetas e Eliseu, que anunciam já saber o que ia acontecer com Elias, pois repetem: “Sabes que o Senhor hoje vai arrebatar o teu amo pelos ares, por cima de tua cabeça? Respondeu ele (Eliseu) “Já sei, calai-vos” (2º Reis 2,3; 2,5). Continuando o caminho, Elias com seu manto abre as águas do Jordão para a travessá-lo a pé enxuto e por fim temos o miraculoso fato do arrebentamento do Profeta: “E aconteceu que, enquanto prosseguiam o caminho a conversar, um carro de fogo e cavalos de fogo os separaram um do outro; e Elias subiu ao céu em meio a tempestade” (2º Reis 2, 11). Eliseu fica com o manto do profeta e duas vezes seu espirito, como havia pedido, e assim passa a realizar grandes prodígios como fizera seu mestre.
No Antigo Testamento também fazem referências ao profeta Elias os textos de 2º Crônicas 21, 12-15; 1º Macabeus 2, 58. Nos textos de Sirácida e Miquéias, além da memória de Elias, e acrescentado a seguinte profecia: “tu que fostes designado nas censuras para os tempos que há de vir, para aplacar a cólera antes que ela desencadeie, reconduzir os corações do pai para o filho” (Cf. Sirácida 48, 10)[4]. Profecia esta que se difundiria por meio da tradição de Israel.
O Profeta Elias voltaria a ser lembrado na literatura apocalíptica, gênero literário judaico[5] frequente entre 200 a.C. e 100 d.C.; D. S. Russel cita a influência de Elias nestes escritos:

Com o passar do tempo surgiu a crença de que o próprio Elias retornaria à terra como visitante celeste a anunciar o messias. Uma passagem às vezes citada em apoio é 1 Henoc 90,31, onde se diz que Elias, juntamente com Enoc, desce do céu para preparar o julgamento do messias” (RUSSEL, 1997, p. 156-157)

Na literatura judaica dos séculos II a VII que é caracterizada por obras como o Mishnah[6] e o Talmud[7] seriam feitas referências ao profeta no que concerne ao comentário dos textos onde ele aparece nas Escrituras, nestes textos Elias seria caracterizado como o personagem bíblico, inflexível na luta pela verdade e causa de Javé, no entanto mesmo nestes escritos já aparecem histórias sobre aparições do profeta. Na literatura pós-talmudica, ou seja, a Midrash[8] Elias seria apresentado gentil e bondoso ao povo judeu, a crença da não morte de Elias possibilita a este uma série de aparições aos judeus piedosos. Ausubel assim resume as histórias atribuídas a Elias:

O profeta Elias inspirou mais histórias que qualquer outro herói da bíblia. Em todas essas histórias, por mais ingênuas que possam parecer, sua personalidade é retratada de forma altamente individualizada – em parte humana, em parte divina. Sua maior missão de acordo com essas lendas, é aconselhar e proteger o homem nos momentos difíceis. Em suma ele é uma espécie de amigo invisível. (AUSUBEL, 1989, p. 273)

No período do chamado misticismo gueônico que se estende dos séculos VIII ao XI são sustentados muitos pontos da tradição apocalíptica, sendo inclusive atribuído um apocalipse ao profeta Elias (Cf. SCHOLEM, 1989, p. 28). No século XII a Cabala, que podemos muito sumariamente resumir como mística judaica seria atribuída à revelação de Elias (SELTZER, 1989, p.427), o profeta apareceria citado na Zohar[9] para explicar os mistérios de Deus (SELTZER, 1989, p.434).
Na piedade judaica encontramos devoções próprias ao profeta. Na Ceia de Páscoa um copo de vinho é colocado sobre a mesa, e a porta é deixada aberta para permitir que o profeta Elias, entre e beba. Em cada cerimônia de circuncisão[10] um assento está marcada para Elias, este é muitas vezes esculpido e ornado com bordados, e em determinado momento da oração referem-se a ela: “Esta é a cadeira de Elias, bendita seja sua memória”. Elias é ainda identificado com o Anjo da Guarda da criança judia, sendo a ele atribuído um amuleto que é colocado sobre seus berços[11]
Assim verificamos como Elias nunca foi esquecido na tradição hebraica, pois múltiplas são suas referências na literatura e na piedade desde povo.

3.      PROFETA ELIAS NAS ESCRITURAS E TRADIÇÃO CRISTÃ:
Segundo a teologia cristã todo o Antigo Testamento, ou seja, a Bíblia Hebraica apontam para o messias, o Cristo Jesus. Desta forma, a figura de Elias que já tivera sua memória atualizada pela literatura intertestamentária, será lembrada pelos quatro evangelistas, por seu caráter messiânico.
Primeiro temos a identificação de Profeta Elias com São João Batista, esta nos é dada de modo claro no discurso de Jesus sobre João Batista narrado por Mateus: “Se quiserdes compreender-me, ele (João Batista) é Elias que deve voltar” (Mateus 11, 14), e também se encontra na descrição do precursor de Cristo feita pelo anjo a Zacarias e narrada por Lucas: “Ele reconduzirá muitos dos filhos de Israel ao Senhor Deus; e ele mesmo caminhará a sua frente, sob os olhos de Deus, com o espírito de Elias, para reconduzir o coração dos pais aos filhos” (Lucas 1, 16-17). Porém no Evangelho de João, ao ser interrogado pelos sacerdotes e levitas, o Batista afirma não ser Elias (João 1, 21).
De forma implícita nos Evangelhos muitos elementos unem Elias a João Batista,  suas vestes (2 Reis 1,7; Mateus 3,4); sua vida no deserto ( 1 Reis 19,8; Lucas 1, 80); seu confronto com as autoridades reais (1 Reis 17,1; Lucas 3, 19). Assim sendo, desde os Padres da Igreja se estendem as discussões sobre se a profecia relativa a Elias teria ou não sido comprida em João Batista.
Através das celebres indagações de Jesus aos discípulos: “Quem dizem os homens que eu sou?” podemos relacionar a figura de Elias a Jesus. Pois, em ambos os evangelhos entre as respostas encontradas por Jesus, Cristo é identificado com Elias (Mateus 16, 13-14; Marcos 8, 27-28; Lucas 9, 18-19;); Os Evangelistas narram ainda Herodes perguntando pela identidade de Jesus e nas respostas que recebe Cristo novamente seria identificado com Elias (Marcos 6, 14-15; Lucas 9, 7-8).
Depois da sua mal sucedida pregação de Jesus na Sinagoga de Nazaré, ele refere-se a Elias: “É verdade o que vos digo: havia muitas viúvas em Israel nos dias de Elias, quando o céu ficou fechado três anos e seis meses e sobreveio uma grande fome sobre a terra toda; no entanto, não foi a nenhuma delas que foi enviado Elias, mas sim, a uma viúva de Serepta em Sídon” (Lucas 4, 25-26).
Os Evangelhos sinóticos narram ainda a presença de Elias no momento da transfiguração de Jesus. Ambos os textos dizem que Moisés e Elias conversavam com Cristo (Mateus 17, 3; Marcos 9,4; Lucas 9,30) e estavam envoltos em glória (Lucas 9, 31), conversavam sobre consumação dos dias de Jesus, Pedro subitamente toma a palavra é pede a Jesus para construir três tendas, porém neste momento temos a manifestação de Deus em uma nuvem e logo depois desaparecem Moisés e Elias. No Evangelho de Marcos após este acontecimento os discípulos fariam uma pergunta que aqui se faz interessante:

Eles o interrogavam: “Por que os escribas dizem que Elias deve vir primeiro?” Ele lhes disse: “ Decerto Elias vem primeiro e restaura tudo; todavia, como é que está escrito sobre o Filho do Homem que deve sofrer e ser desprezado? Pois bem, eu vos declaro, Elias veio e fizeram a ele tudo que queriam, conforme esta escrito a seu respeito. (Marcos 9, 11-13)

Este texto mostra-nos como a expectativa messiânica esta implicada na volta de Elias e como ambas tem por signo o sofrimento, o filho do homem deve sofrer; com Elias[12] fizeram o que quiseram.
O profeta é ainda citado por São Paulo na Epístola aos Romanos (11, 2-4) e posto como modelo de oração na Epístola de São Tiago (5, 17-18), que nos recorda do episódio do seca em Israel e como a oração do profeta foi ouvida.
Já na Literatura Patrística, as menções a Elias se dividem entrem as relativas a exegese do Texto Sagrado no concernente a profeta, sendo ressaltado o episódio da transfiguração; as às profecias que tratam de sua função messiânica. Neste sentido aparecem claramente nos escritos de São Justino de Roma e Santo Agostinho.
Uma outra forma de interpretação da Escritura e a alegórica que permite aos padres colocarem a figura de Elias como topos vetero-testamentario da figura de Jesus Cristo, João Batista e Paulo, assim facilitando suas relações e interpretação. Porém o profeta ainda seria tomado por modelo da vida, seja na defesa da verdade, ou na vida de pobreza, castidade, obediência a Deus. Essa caracterização logo faria de Elias modelo da vida monástica; apostólica e presbiteral. Sendo tais características sumariadas nos escritos de São João Crisóstomo e Gregório de Nissa que propõe Elias como um exemplo de vida cristã[13].
Dois elementos ainda nos ajudam a perceber a presença de Elias na tradição cristã, sua memória litúrgica que é celebrada nas Igrejas do Oriente[14], e os muitos templos a ele dedicados.

4.      PROFETA ELIAS NO CORÃO E TRADIÇÃO ISLÂMICA.
No islamismo encontramos entre os profetas maiores: Adão, David, Moisés, Jesus e Moramad. No intervalo histórico entre esses grandes profetas Deus não deixa de manifestar-se e envia ainda outros mensageiros para falarem em seu nome, entre esses se encontra Elias. No livro sagrado dos muçulmanos, o Corão, encontramos narrada a história de Elias um profeta e justo, um verdadeiro homem de Deus, que poderosamente pregou contra a adoração de Baal.
Na literatura islâmica, outro texto narra a história e os feitos dos profetas, este é  chamado de Hamzanama, ai encontramos histórias sobre Elias que não são narradas no Corão, e alguns feitos milagrosos que mostram como o profeta é sempre favorável aquele que precisa de sua ajuda. Alguns desses textos são ilustrados e é de onde nos vem às representações artísticas de Elias do Islã medieval.

5.      A REPRESENTAÇÃO ICONOGRÁFICA DO PROFETA ELIAS
As três grandes religiões monoteístas de uma forma ou outra mantiveram relações e se influenciaram mutualmente no passar da história, relações estas que aqui são ligadas pela devoção e representações do profeta Elias que existiram em ambas as religiões. Porém, ao trata-se das gravuras islâmicas e judaicas que retratam o profeta, temos de ter em conta que sua função é decorativa, já no Cristianismo o profeta Elias e cultuado como Santo Elias e a produção de suas imagens tem lugar nas igrejas e são destinadas ao culto.
A amplitude que ganha à representação do profeta Elias no Cristianismo e comentada por Julio Lamelas Míguez: 

Se trata de uma iconografia de profundas raízes bíblicas de uma personagem como poucos iguais por sua continuidade no tempo, e sua amplitude no espaço. Desde as origens do cristianismo com os afrescos das catacumbas romanas e da Sinagoga de Doura-Europos até o século XIX, desde o Monte Carmelo na Palestina até e Paris, desde Córdoba (Espanha) até Ioroslav (Rússia) incluindo a America do Sul, sua figura aparece presente na arte e na literatura. (tradução nossa de MÍGUEZ, 1988, p.111)

Passamos então a uma caracterização dos elementos encontrados em grande parte das representações e ícones do profeta Elias: As características básicas da iconografia dos profetas são mantidas em Elias e lhe são acrescentados elementos próprios.
Como os profetas, Elias é representado de barba sinal de sua maturidade, autoridade e mandato divino; por vezes encontramos “seus cabelos ornados com uma mecha ligeiramente torcida voltada para o céu, mostra que a inspiração profética, o Espirito vem do alto” (LELOUP, 2006, p. 118); o pergaminho ou livro também é próprio da representação do profeta e por vezes é mantido; quanto a suas vestes segue o modelo, porém com as especificações que nos são dadas pela Escritura, “Era um homem que usava um veste de pelos e uma tanga de peles em torno dos rins... é Elias” (2º Livro dos Reis 1, 7) e as muitas referências[15] a seu manto que nas Escrituras caracterizam sua dignidade, missão e poder; a cor das vestes de Elias esta muitas vezes ligada a elemento ígneo, visto as  relações de Elias com o fogo; em algumas representações encontramos ainda o profeta empunhando ou bastão sinal de sua constante caminhada ou a espada que lembra-nos o episodio da morte dos profetas de Baal, bem como sendo o profeta  aquele que anuncia a Palavra de Deus que nas Escrituras e muitas vezes identificada com a espada[16].

5.1 REPRESENTAÇÕES E ÍNOGRAFIA DO PROFETA ELIAS NA ANTIGUIDADE TARDIA E IDADE MÉDIA.
Partiremos de dois modelos singulares encontradas nos primeiros séculos da Era Cristã. A primeira trata-se de uma das muitas gravuras encontradas na Sinagoga de Dura Europos nas proximidades do rio Eufrates no séc. III d.C.. A Segunda são duas representações da Ascenção de Elias uma no sepulcro de uma rica família romana e a outra em uma das portas da Igreja de Santa Sabina em Roma.
 Na pintura sinagogal temos a representação do sacrifício de Elias no Monte Carmelo, ao centro encontra-se o altar preparado por Elias com a vítima imolada e o retrato do exato momento que Deus envia fogo para consumir o sacrifício, a direita vemos Elias elevando sua oração a Deus e a esquerda o profeta ordenando que o sacrifício fosse encharcada por talhas de água para assim aumentar a enormidade do milagre. Na mesma sinagoga outra pintura nos mostra o profeta a reanimar o filho da viúva de Serepta, isto é representado em uma sucessão de passagens, no primeiro quadro temos a viúva com seu filho no colo, no segundo o profeta a reanimar o menino em uma grande cama, e no último o menino que é devolvido a sua mãe.

Figura 1 – Ressurreição do filho da Viúva, Sinagoga de Dura, séc. III.




Figura 2 – Sacrifício de Elias, Sinagoga de Dura, séc. III. 

           

O segundo modelo de representação eliana provém de Roma, são duas representações da ascensão do profeta Elias, o primeiro esculpido no sepulcro de uma importante família romana no séc. IV que segue os cânones da arte clássica retratando  Elias no carro de fogo e Eliseu seu discípulo a segurar o manto que lhe é deixado. A outra representação trata-se de um dos entalhes da porta da Basílica de Santa Sabina, datados do V século, temos a mesma cena também segundo o modelo clássico helênico, com as nuvens, o carro, os cavalos e Elias já no ar que é puxado por um anjo; Eliseu que espera por seu manto junto de outros homens que parecem extasiados com o que veem.




Figura 3 – Ascenção de Elias, túmulo em mármore dos Anicii, Roma, séc. IV.


Figura 4 - Portas da Igreja Santa Sabina, Roma, séc. V



Do período Justiniano até o fim da revolta iconoclasta preservam-se as representações de Elias que compõe os mosaicos presentes nas Igrejas dedicadas a Transfiguração, sendo o mais significativo o do mosteiro de Santa Catarina no Sinai, que embora haja grande controvérsia sobre a datação, acredita-se que ali se encontre um das mais antigas representações da Transfiguração de Cristo, que se tornaria modelo para as demais. A Igreja do mosteiro do Sinai é importante, pois seria este um centro de culto eliano, visto ter sido neste monte que o profeta Elias se encontra com Deus na brisa suave. Este mosaico nos mostra Cristo envolto em luz, a sua esquerda Moisés e a sua direita o profeta Elias que é representado de barbas, longa túnica marrom e coberto por manto claro. A transfiguração é um dos importantes fatos da vida de Cristo e assim sendo encontram-se muitas representações, como o profeta Elias e parte do acontecimento, seria esta uma marca da iconografia Eliana. Nestas representações geralmente segue-se o modelo profético representado Elias com barbas, túnica e manto, envolto em luz como na narração dos textos Evangélicos.
Do século XIII nos chegam dois autênticos ícones bizantinos, representado o profeta Elias, o primeiro é proveniente do Monte Sinai, como já assinalado lugar de culto eliano e retrata o profeta com longos cabelos e barba, túnica e manto de pele de animais, o ícone esta em cores fortes a ressaltar o vermelho uma das cores distintivas do profeta, no canto superior direito encontramos o corvo, ave que muitas vezes aparece na iconografia de Elias, lembrando que por eles foi alimentado no Carit, sendo este considerado um prenuncio da Eucaristia. O segundo ícone e de origem russa, e foi escrito para compor o iconostasis da Igreja de Santo Elias as margens do Rio Onega, é um ícone de cores escuras onde o profeta aparece tradicionalmente vestido e segura em sua mão esquerda um pergaminho.




Figura 5. Profeta Elias, Monte Sinai, séc. XIII



Figura 6. Profeta Elias, Rússia, séc. XIV




Um dos ícones mais conhecidos de Elias, é o profeta no deserto sendo alimentado pelos corvos, Tomamos aqui um ícone grego do século XIV, que retrata o profeta em uma caverna, junto ao riacho do Carit, nesta imagem vemos o corvo trazendo em seu bico pão para o profeta. Esta iconografia se tornaria tradicional nos refeitórios dos monteiros do Montes Atos e dos Conventos Carmelitas no Ocidente.
A Iconografia da Ascenção de Elias se passa junto ao rio Jordão, vemos então em terra o profeta Eliseu que a segurar o manto olha para Elias, este em um carro de fogo, com cavalos de fogo e guiados por um anjo de Deus; Elias volta seu olhar para seu discípulo lhe confiando à missão profética (em muitos ícones que retratam este acontecimento, Elias olha para o Céu) neste ícone a direção de Elias que sobe ao céu fica claro pela direção que segue o anjo ao canto superior direito da tela onde se encontra saindo de uma mancha azul a mão de Deus.


Figura 7. Profeta Elias é alimentado pelo corvo, Grécia, séc. XIV



Figura 8. Ascensão do Profeta Elias, Rússia, séc. XIV





                                
           

5.2 TRANSPOSIÇÃO DA TRADIÇÃO ICONOGRAFICA ELIANA PARA O OCIDENTE MEDIEVAL.

Nas expedições militares dos séculos XII e XIII chamadas de cruzadas, tivemos em um mesmo território, a Terra Santa, cristãos de tradição oriental e ocidental, muçulmanos e judeus. Neste contexto nasce a Ordem do Carmo, como um grupo de eremitas junto ao Monte Carmelo, a historiografia sobre suas origens é uma das mais confusas[17]. Seriam estes primeiros carmelitas peregrinos da Europa? Seriam eles já membros dos estados cruzados? Seriam uma mescla de peregrinos orientais e ocidentais? São todas hipóteses possíveis para a origem da ordem. Porém, o que as fontes revelam é a institucionalização deste grupo de eremitas, que se deu com Fórmula de Vida, escrita por S. Alberto de Vertilli, Patriarca Latino de Jerusalém entre 1207 e 1214. Em 1220 Jaques de Vitry refere-se a proximidade destes eremitas com o mosteiro grego de Santa Margarida, e afirma que estes eremitas viviam a exemplo do profeta Elias no Monte Carmelo.
Em 1238 com o avanço sarraceno sobre os domínios cruzados, inicia-se a migração destes carmelitas para o Ocidente, entretanto, levam consigo uma identidade formada no Monte Carmelo, esta era constituída pela devoção a Virgem Maria e a Santo Elias que seria ampliada no Ocidente, uma liturgia que era celebrada na Terra Santa pelos cruzados[18]e se torna própria da Ordem, e a Fórmula de Vita dada por Santo Alberto que em 1247 seria reconhecida pelo Bispo de Roma o Papa Inocêncio IV como Regra.
            Ao chegarem a Europa estes eremitas logo modificam seu estilo de vida, passando a condição de mendicantes, porém ainda tinham de responder claramente aqueles que perguntassem sobre suas origens, então nas Constituições da Ordem do Carmo de 1281, a primeira Rubrica diz: respondam que procedemos dos profetas Elias e Eliseu e dos filhos dos profetas no Monte Carmelo. Frei João Baconthorp daria um tratamento escolástico a questão, teólogo, doutor pela universidade de Paris que lecionava em Oxford, dedicaria algumas obras a explicar a litígio sobre a origem eliana do Carmo. No final do séc. XIII temos o aparecimento de um texto atribuído a João IXVI que a seria a regra carmelita anterior a Regra escrita por Santo Alberto, este texto medieval conhecido como Instituição dos Primeiros Monges recolhe em um belo relato muitos dos argumentos e lendas sobre o profeta Elias como fundador dos Carmelitas e escreve uma história interrupta desde o Profeta até os carmelitas seus sucessores. Desta forma Elias se torna personagem proeminente e fundamental na história carmelitana.
            Visto que a tradição atribuiu a fundação do Carmelo a Elias, o profeta pareceria muitas vezes vestido com o habito próprio destes religiosos, composto de túnica longa com escapulário marrom e capa branca, seria a capa equivalente a manto de Elias. Assim o vemos representado desde o século XIV nas Igrejas Carmelitas da Itália, e com a expansão dos conventos carmelitas também se expandiria a sua representação presente na grade maioria das Igrejas desta ordem.

Figura 9. Profeta Elias, de Andrea di Bonaiuto, Itália. 1360



Figura 10. Profeta Elias de Pietro Lorenzetti, Itália, 1327



                                    
                 
6.      CONCLUSÃO:

A antiga tradição de veneração ao profeta Elias que perpassa os séculos e as religiões monoteístas se encontra viva no Cristianismo, seja nas Igrejas de tradição oriental ou de tradição latina.
 E sendo o objetivo desde simpósio tratar da presença das tradições orientais no Brasil, saio do recorte temporal deste artigo que se estabelecia entre a Antiguidade Tardia e Idade Média e transporto o tema para o Brasil.
Não vejo melhor método para confirmar a devoção a um santo que encontrar uma Igreja a ele dedicada, no Brasil temos dois templos dedicados a Elias a primeira provém da Ortodoxia se encontra na cidade de Guaxupé - Minas Gerais e foi sagrada em 1928, a segunda e Católica Romana de rito latino, se encontra em Curitiba e foi fundada no ano 2000, talvez seja esta a única paróquia de rito latino dedicada ao Profeta Elias, devoção advinda dos frades carmelitas que atendem a localidade.
 Encontramos então no primeiro templo um tradicional ícone bizantino que é venerado pelos fieis e na paróquia latina um imagem em gesso do profeta, que em uma das mãos empunha a Espada e na outra segura uma maquete da Igreja, encontramos ainda na Igreja Matriz um painel inspirado na iconografia oriental que retrata a transfiguração na qual é também representado Elias e em uma das capelas um outro painel de Elias sendo alimentado pelo anjo.
Desta forma o culto a Santo Elias que se encontra vivo em nossas tradições, em nossas liturgias e em nossa piedade e arte, também deve ser sinal de unidade e diálogo entre os cristãos do Oriente e Ocidente e mesmo judeus e muçulmanos.

REFERÊNCIAS

AUSUBEL, Nathan. Conhecimento Judaico. Rio de Janeiro: Koogan, 1989.
BIBLIA. Português. A bíblia. T.E.B. – Tradução Ecumênica da Bíblia. São Paulo: Loyola, 1996.
BUBER, M. I racconti dei Chassidim. Guanda, Parma, 1992.
BRODBECK, Rafael Vitola. Santo Elias – Doutor de Israel. Campinas: Ecclesiae, 2012.
CHALMERS, Joseph. O som do silêncio: escutando a palavra de Deus com o Profeta Elias. Belo Horizonte: 2008.
LELOUP, Jean-Yves. O ícone: uma escola do olhar. São Paulo: Editora UNESP, 2006.
MESTERS, Carlos. A caminhada com o Profeta Elias. Paranavaí: Liv. N. S. do Carmo, 1991.
MÍGUEZ, Julio. Elias y Eliseo en la iglesia de Santa Eulalia de Beiro: un ejemplo de iconografia bpiblia. Porta de aira: Revista de história da arte arensano 1 (1988): 109-115.
RUSSEL, D.S. Desvelamento Divino: uma introdução à apocalíptica judaica. São Paulo: Paulus, 1997.
SAS-ZALOCIECKY, Wladimir. Bizâncio. Lisboa: Editorial Verbo, 1969.
SELTZER, Robert. Povo Judeu, pensamento judaico. Rio de Janeiro: Koogan, 1989.
SCHOLEM, Gershom. Cabala. Rio de Janeiro: Koogan, 1989.
STEINSALTZ, Adin. O Talmud Essencial. Rio de Janeiro: Koogan, 1989.
TINAMBUNAN, Edison R. L. Elijah accoding to the Fathers of the Church. In: Carmelus. Roma, v. 49, fasc. 1, p. 85-116, 2002.




[1] Bacharel e Licenciado em Filosofia pela UFPR, acadêmico do curso de Comunicação da UTFPR. Endereço eletrônico: frei_tiago@hotmail.com. Artigo apresentado em 27 e Agosto, no I Simpósio Nacional de Teologia Oriental, promovido pela FASBAM em Curitiba –PR.
[2] CHALMERS lembra-nos que os dois Livros dos Reis na Bíblia Hebraica formam uma unidade, estes só foram separados com a Septuaginta a edição grega da Bíblia composta pelos sábios de Alexandria no séc. III a.C. (Cf. CHALMERS, 2008, p. 15)
[3] O profeta em Israel era o homem chamado a falar em nome de Deus, um navi, “palavra navi entrou em uso no tempo de Samuel como sinônimo de homem de Deus e vidente” (SELTZER, 1990, p. 68). Elias é chamado de homem de Deus em 1º Reis 17,18; 18;24; 2º Reis 1,9; 1,10; 1,11; 1,12; 1,13.Porém, a partir da monarquia o profeta ganha ainda uma função política a qual muitas vezes implica em contestar o poder do Rei, como no caso de Natan ao repudiar o adultério de Davi. As contestações de Elias aparecem em suas muitas denúncias a Acab.
[4] Em Malaquias 3, 23-24: “Eis que vou enviar-vos Elias. O profeta, antes que venha o dia do Senhor, o grande e terrível dia. Ele reconduzirá o coração dos pais para os filhos e o coração dos filhos para os pais, a fim de que eu não venha para ferir a terra com o interdito”.
[5] Que influenciaria as comunidades cristãs nascentes, legando ao cânon do Novo Testamento o Livro do Apocalipse.
[6] A Mishnah (repetição ou doutrina) é a Segunda Lei. Foi copiada na Palestina, em hebraico por 148 por mestres-escribas – os Tanaim (professores da Midhnah). Trata-se de um código lentamente desenvolvido, que levou quase cinco séculos e meio desde a era dos escribas até sua redação final, por Judá há-Nasi, no séc. III da Era Cristã” (AUSUBEL, 1989, p. 5).
[7] O Talmud é a compilação da lei oral dos Judeus (Mishnah) com comentários rabínicos (Gemara) que a suplementa – em distinção às Escrituras ou leis escritas. Sendo escrito em duas redações principais: a palestina que data do Século IV e babilônica do século VI. Quanto às referências feitas a Elias no Talmud Cf. STEINSALTZ, 1989, P 289,300,303)
[8] M. Buber define a Midrash como “um gênero literário pós-talmutico, dedicado à interpretação homilética das Escrituras, rico de lendas, parábolas, metáforas e máximas de sabedoria” (BUBER, 1992, p.21)
[9] O próprio livro da Zohar (séc. XII) é em algumas interpretações revelação do profeta Elias (SALTZER, 1989, p.464)
[10] A razão da presença de Elias nas circuncisões parte de sua identificação com Anjo da Aliança que aparece em Malaquias.
[11] Outras referências à presença de Elias nas cerimonias religiosas judaicas podem ser encontradas em: O PROFETA ELIAHU, Revista Marashá, Nº 34 Setembro de 2001. COHEN, Jeffrey M. PHINEHAS, ELIJAH & CIRCUMCISION, Disponível em: http://jbq.jewishbible.org/assets/Uploads/411/jbq411pinchascohen.pdf acessado em: 29 abr. 2013.

[12] Joseph Ratzinger se refere a expectativa entre o judeus do martírio de Elias: Jesus “alude certamente também, tendo como referencia a Escritura, as tradições vigentes que previam o martírio de Elias: Elias era considerado “o único que na perseguição tinha escapado ao martírio; mas no seu regresso... devia também sofrer a morte” (RATZINGER, 2007, p. 266)
[13] As referências sobre a figura de Elias nas obras dos padres da Igreja nos são dadas no artigo: TINAMBUNAN, Edison R. L. Elijah accoding to the Fathers of the Church. Carmelus. Roma, v. 49, fasc. 1, p. 85-116, 2002.
[14] Na liturgia da Igreja de Roma, apenas é concedido à Ordem do Carmo a celebração da liturgia de Santo Elias, no dia 20 de Julho.
[15] 1º Reis 18, 19; 2º Reis 2,8; 2,13-14.
[16] Isaias 49, 2; Efésio 6,7; Hebreus 4, 12.
[17] Uma interessante apresentação das hipóteses historiográficas sobre as origens da Ordem do Carmo nos é dada na obra: MULLINS, Patrick. St. Albert of Jerusalem and the roots of carmelite spirituality, Roma: Edizione Carmelitane, 2012.
[18] A liturgia do Santo Sepulcro embora de origem latina, possuía influencia oriental. Algo observado na celebração das festas dos santos do Antigo Testamento, algo incomum na Igreja Latina.